APARECER / DESAPARECER | 10.11.22 > 06.12.2022



APARECER/ DESAPARECER

Everardo Miranda

 

10 de novembro > 06 de dezembro de 2022

Curadoria Ligia Canongia

                                                                                                          

Os sinais de filiação à linhagem construtiva sempre foram claros na poética de Everardo Miranda. Desde o início de sua trajetória nos anos 1970, eram patentes os indícios genealógicos dessa raiz, como a afirmação do plano como entidade absoluta da pintura, a clareza técnica, o pacto com a objetividade, os valores abstratos e as formas precisas da geometria. Estavam lá, visivelmente anunciados, os instrumentos máximos da racionalidade moderna e do anti-ilusionismo. Mas também ali estavam os desvios que o artista operava naqueles padrões, desvios que, embora sutis, tinham a potência de desconcertar os modelos de sua referência. Sabe-se que o Neoconcretismo começou a sinalizar rupturas com a ortodoxia do construtivismo internacional, o que viria a atingir, nos anos 1960, com a Pop Art, o patamar radical de sua inteira dissolução. Miranda é herdeiro, portanto, da grave penetração construtiva no imaginário do artista brasileiro, mas também de sua crise.

Devido à Incomunicabilidade entre os cânones formalistas da tradição geométrica e a realidade brasileira, híbrida e complexa; devido à dissociação mecânica e positivista entre sujeito e objeto, e à sua impermeabilidade aos paradoxos das sociedades contemporâneas, o legado construtivo entrou em colapso. A ideia desse colapso, entretanto, nunca teve o radicalismo definitivo de um fim, senão o enunciado de uma metamorfose. Diversas experiências pós-modernas mantêm o lastro do construtivismo histórico, embora já libertas de seus elos intelectuais e aristocráticos, instaurando o caráter da instabilidade onde predominava a ordem pura, e reabilitando o debate entre razão e emoção. É nesse espaço intermediário, em que a geometria assume deslocamentos e contradições em seus códigos originais, que se afirma o trabalho de Everardo Miranda. Um espaço que é fio de navalha entre o compacto e o diáfano, o sólido e o vazio, o todo e a parte. Um espaço, afinal, que se institui com a segurança clássica de David, ao mesmo tempo em que pode se esvair nos vapores românticos de Turner. Lugar, por excelência, do paradoxal.

Nos planos monocromáticos de Miranda, sempre falta uma parte, sempre ocorre uma quebra na linearidade da imagem por um ato deliberado do artista, que deixa para o espectador a tarefa de completá-la em sua imaginação, ou viver a angústia permanente dessa ausência. Se o recorte retirado daquela completude será recuperado, ou se o plano estará fadado a ter uma de suas partes oculta, é uma dúvida que perturba a expectativa do observador. Já nos dípticos, que conjugam superfícies plenas com outras, indefinidas, o embate é ainda mais evidente. Com a indefinição de um dos elementos, em que os pigmentos a seco atomizam e esmaecem sua figura e seu perímetro, chega-se a interrogar sobre o nexo lógico que sustenta aquela dupla, além de se inquirir se a imagem está em vias de aparecer ou desaparecer. Da mesma forma, nas aquarelas, por natureza uma técnica que pode alternar intensidade e transparência da matéria e da cor, Everardo Miranda chega por vezes ao limite de rarefazer de tal modo a presença cromática, que ela tende a se esvair e se identificar com o branco do papel.

Não importando a técnica ou o suporte, o que se vê na obra do artista é a constituição de espaços em suspensão, que indeterminam o campo preciso da imagem, que tornam flutuantes os desígnios da certeza, e que discutem as fronteiras indecisas da própria figurabilidade. Seu trabalho legitima o passado moderno, caminha nas bordas do projeto construtivo, mas sempre abrindo à frente uma bifurcação para as derivas contemporâneas.   

Ligia Canongia


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